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SHOW DE CALOUROS: nova temporada no Oscar e Globo de Ouro
Recentemente visitei a exposição de Oswald de Andrade, no
Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo. Da visita, uma
frase que foi adesivada em letras garrafais na parede não me
saiu mais da memória: “Não nascemos para saber.
Nascemos para acreditar”. Apesar de não concordar
plenamente com a afirmação porque acho que, mesmo na
crença, há uma escolha racional por ela, um outro
pensamento me ocorreu: o perigo da fé é que ela
não pode ser questionada, ou corre-se o “perigo” de
transformá-la em hipótese. Sendo assim, este artigo
procura instaurar ao menos uma fissura em um dogma que a
indústria do cinema norte-americano nos tem imposto como sendo o
da “excelência artística”: a
interpretação mimética dos atores.
Para iniciar, serão necessários dois parágrafos de
retrospectiva histórica. O domínio do cinema
norte-americano começa há quase 100 anos, durante a
Primeira Guerra Mundial. É a partir deste momento que os
primeiros estúdios são criados e a produção
de filmes é transformada em uma espécie de linha de
montagem de uma fábrica que segue fórmulas e
padrões visando maximizar os lucros. Roteiros lineares,
personagens carismáticos, histórias que pareçam
reais, clara distinção entre o bem e o mal e mensagens
edificantes são algumas das peças que não podiam
(e até hoje não podem) faltar nesta engrenagem.
No entanto, no final da década de 20, esta indústria toma
duas iniciativas que iriam dar credibilidade ao seu automatismo
criativo: em 1927 ela cria a Academia de Artes e Ciências
Cinematográficas (uma Academia que não tem nada de
acadêmica e é, antes de mais nada, pragmática,
constituída por pessoas que fazem cinema e técnicos em
sua grande maioria) e, em 1929, surgem os prêmios de
mérito, mais tarde conhecidos como Oscar, que vão fazer
com que a suposta “excelência cinematográfica”
surja no seio da própria indústria . Para isso, bastou um
simples artifício (mas que é chamado de regra):
“Para entrar na disputa, um filme deve ser de longa-metragem, com
duração acima de 40 minutos. Deverá ser exibido
publicamente em 35 mm, 70 mm ou em formato digital em uma sala
comercial da cidade de Los Angeles antes da meia-noite de 31 de
dezembro.” Num mercado altamente protecionista que encontrou um
público avesso a legendas e ao experimentalismo estrangeiro a
competição inicia, todos os anos, com francos favoritos.
Pode-se afirmar então que, a partir de 1929, os veículos
de comunicação de massa que cobriam a cerimônia de
premiação começaram a ensinar às massas o
que é a “arte cinematográfica”. Inicialmente
pelo rádio e pelos jornais e, a partir de 1953, pela
televisão, o que se pode constatar é a
construção de valores cinematográficos que
são tão nobres quanto um comercial de sabão em
pó. Um deles diz respeito à atuação. De
tradição naturalista, o cinema hollywoodiano adotou como
modelo um tipo de interpretação visível,
técnico e objetivo: a que o ator/atriz se transforma em
alguém ou transforma seu corpo para caracterizar um personagem.
Já em 1930, George Arliss recebe o prêmio de melhor ator
ao personificar o Primeiro-Ministro do Reino Unido Benjamin Disraeli.
Em 1932, Charles Laughton venceu com Henrique VIII. Paul Muni é
premiado, em 1936, por dar vida a Louis Pasteur e, no ano seguinte, foi
indicado por sua interpretação de Emile Zola.
De Benjamin Disraeli até Virginia Woolf, de Nicole Kidman,
passando pela Rainha Elizabeth, de Helen Mirren, ou ainda o ditador Idi
Amim, de Forest Whitaker, a cantora Edith Piaf, de Marion Cottilard e o
ativista Gandhi, de Ben Kingsley, todos esses personagens reais
precisam de atores para alimentar um vício da indústria:
as cinebiografias. Este gênero, que é tão bem
produzido quanto folhetinesco, só se sustenta porque a
fábrica de sonhos de Hollywood é especialista no que
chamamos de “suspensão da descrença”, um
momento em que a fé toma o lugar da razão e a
ilusão adquire o status de “verdade documental”.
Afinal de contas, se até mesmo Jayme Monjardim tomou
“liberdades poéticas” ao contar a vida de sua
mãe, Maysa, em uma minissérie, que dirá uma
produção anglo-americana, sobre um líder africano
e dirigida por um escocês (caso de O Último Rei da
Escócia).
Em 1943, o Oscar ganha um concorrente, mas que é, antes de tudo,
um aliado na transmissão de seus valores. Não por acaso
recebe a alcunha de “Prévia do Oscar”. Trata-se do
Globo de Ouro, concedido pela Imprensa Estrangeira de Hollywood. O fato
é que a Imprensa Estrangeira só vem comprovar a
hipótese que os estrangeiros foram muito aplicados nas
lições ensinadas pelo mestre. Os filmes
cinebiográficos se repetem em profusão em ambas as
cerimônias, assim como a preferência pelo mimetismo. Na
cerimônia de 2012 não foi diferente. A camaleoa Meryl
Streep vence ao personificar Margareth Tatcher e Michelle Williams por
dar vida à Marilyn Monroe. Este show de calouros, onde o melhor
imitador é premiado, não parece cansar nem o
público e nem a crítica.
Aliás, estatísticas apontam ainda uma outra mesmice que
acabou sendo travestida por mérito: nenhum prêmio mundial
tem tantos atores indicados múltiplas vezes como o Oscar e o
Globo de Ouro. No caso da “recordista” Meryl Streep foram
17 indicações ao Oscar (2 vitórias) e, no Globo de
Ouro, 25 indicações (8 vitórias). Num país,
que é um dos que mais fazem filmes no mundo, não
há hipóteses suficientes que justifiquem este
monopólio. Que mundo circunscrito é esse que não
é capaz de enxergar outras boas atrizes dentro e fora dos
Estados Unidos? Se fôssemos fazer estudos comparativos, Streep
seria 25 vezes melhor que Catherine Deneuve, que nunca foi indicada ao
Globo de Ouro. Enfim, é um recorde absurdo que apenas faz
sentido se acreditamos nele sem pensar.
Olhar é algo que se forma e, também, conforma.
Inconscientemente, já incorporamos em nosso cotidiano
expressões do tipo: “Aquela pessoa mentiu tão bem
que merecia um Oscar”. No Troféu Imprensa, nosso
prêmio da televisão, a estatueta tem os mesmos contornos.
Também não nos supreendemos quando achamos que uma
atuação “tem a cara do Oscar” e, de fato,
acertamos. Nos cinemas e palcos brasileiros, vemos uma profusão
de sósias de Renato Russo, Tim Maia, Elizeth Cardoso, Lula,
Cazuza e Clarice Lispector serem aclamados. Dos 117 anos desde a
invenção do cinema, a cerimônia do Oscar enfatizou
por quase 8 décadas que o mimetismo é a excelência
da interpretação. Este é o seu legado.
As indicações ao Oscar 2012 acabaram de sair e Meryl
Streep recebeu sua 17ª indicação e, quase com
certeza, ganhará seu 3º Oscar. A mídia irá se
derramar em elogios ante esta “façanha” e o mundo
irá se emocionar na cerimônia ao vivo quando ela
(a)parecer nervosa no palco recebendo seu troféu. Algum
comentarista vai lembrar que ela já superou Katharine Hepburn em
indicações, mas ainda não a alcançou em
vitórias, que são quatro. Com certeza ninguém
dirá: Como pode um prêmio indicar uma mesma pessoa 17
vezes? Será que uma interpretação precisa de
tantos artifícios técnicos para ser convincente? O ator
italiano Marcello Mastroianni uma vez afirmou: “Eu não
entendo porque os Americanos precisam sofrer tanto para viver um
personagem. Eu apenas chego lá e atuo. É muito divertido.
Não há sofrimento nisso”. Vivências
diferentes, visões diferentes.
Se este texto tiver algum objetivo, que seja abalar um pouco a
fé no “padrão hollywoodiano de qualidade
artística”. Não para destruí-lo, porque
já ele faz parte de nossa cultura, mas para, ao suscitar algum
tipo de dúvida em relação a este formato
padronizado, abrir espaço a novas experiências e
interesses cinematográficos. A crença inabalável,
Dom Quixote já nos ensinou, só nos faz tomar por gigantes
o que, na verdade, são moinhos de vento.
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