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ENTRE A ESTATUETA DO OSCAR E O OSCAR DA
ESTATUETA Dissertação de Tom Lisboa Inicialmente,
a estatueta do Oscar, que foi entregue pela primeira vez em 1929, num
evento fechado, possuía apenas uma função além de ser o prêmio que
iria celebrar o “mérito” da Academia de Artes e Ciências
Cinematográficas: ser um enfeite de escrivaninha ou lareira. A história,
a afluência da mídia e a curiosidade do público, no entanto, vieram
transformar a imagem do Oscar em um símbolo internacionalmente
conhecido. Mesmo assim, mais de 75 anos depois de seu aparecimento, a
bibliografia a respeito deste objeto e da cerimônia de que faz parte não
se encontra devidamente teorizada já que os livros disponíveis para
consulta normalmente enfocam apenas aspectos sensacionalistas ou
curiosidades de bastidores. O
tema da pesquisa surgiu em decorrência da dimensão que este prêmio
tomou na atualidade. No Brasil, o Oscar tomou conta até mesmo do dicionário
da língua portuguesa, que faz referência ao vocábulo Oscar, mas deixa
de lado prêmios nacionais importantes como o Kikito, do Festival de
Gramado, ou o Candango, do Festival de Brasília. A alusão ao seu nome
e à sua forma encontram-se impregnados em nossa cultura. Ao se designar
uma competição importante tornou-se lugar-comum usar o nome Oscar para
supostamente enaltece-la. Foram relatados 74 exemplos que vão dos já
comuns, “Oscar da Música” ou “Oscar da Televisão”, até os
mais singulares como o “Oscar do transporte aéreo” ou o “Oscar da
farmácia de manipulação”. Da mesma forma, a silhueta da estatueta
do Oscar também se metamorfoseu em troféus de competições nacionais
ligadas às mais variadas áreas de atuação como por exemplo o Prêmio
Victor Civita (educação), o Troféu Imprensa (televisão), entre
outros. Hoje
em dia, o Oscar, como imagem, encontra-se desreferencializado de seu
objeto original. De tanto ser protagonista de um espetáculo televisivo
que espetaculariza a vida de pessoas reais, a própria vida acabou sendo
convertida em uma espécie de show contínuo. Foi-se o tempo em que havia a separação entre real
e imaginário, signo e coisa. O objetivo desta pesquisa é traçar uma
linha evolutiva da imagem do Oscar desde sua fase ornamental até a
constituição de seu próprio simulacro. Neste percurso, pretende-se
ainda identificar a formação do imaginário que circunda a estatueta,
estudar a importância dos meios de comunicação na transformação da
estatueta em seu próprio simulacro e analisar o caráter espetacular da
cerimônia do Oscar em consonância com os tempos atuais. Para
atingir estes objetivos deixei de lado a abordagem tradicional que
certos autores impõem de levar em conta o mérito dos filmes premiados.
Como veremos no decorrer do trabalho, o “jogo do Oscar”, que gira
entre a aquisição e a perda da estatueta, acaba esvaziando de importância
qualquer coisa que ela represente. A
principal base teórica que vai servir de fio condutor para analisar a
transformação da estatueta de objeto ornamental até a constituição
de seu próprio simulacro será a teoria das fases sucessivas da imagem
proposta por Jean Baudrillard, em seu livro Simulacros e Simulação.
Também servirão de referência, para fundamentar este estudo, e
dialogar com as idéias propostas por Baudrillard, as
teorias de cultura de massa e imaginário de Edgar Morin, as
reflexões de Guy Debord sobre a sociedade do espetáculo e os conceitos
de Marshall McLuhan a respeito dos meios de comunicação. Trechos
da dissertação: “De
qualquer forma, a estatueta ainda não é um símbolo composto por um
sistema de valores próprios e, por isso, é incapaz de mobilizar o
imaginário coletivo para despertar emoções ou direcionar um
pensamento. Mesmo após o início da premiação, em 16 de maio de 1929,
a importância deste prêmio ainda permaneceu obscura até o começo da
década de trinta. Em primeiro lugar porque o rádio e a imprensa ainda
não divulgavam maciçamente a cerimônia e, em segundo, porque uma
sintonia cultural ainda não havia sido estabelecida. Uma declaração
de Cary Grant torna esta última afirmação mais clara: “Havia algo
de embaraçoso nesta reunião de pessoas bem-sucedidas se
auto-congratulando. Quando tudo começou, nós até brincávamos: ‘Está
bem, Freddie March, nós sabemos que você ganha um milhão de dólares
por filme. Agora suba lá e pegue sua medalhinha’”. Demorou
alguns anos para que esta situação se revertesse em favor da
estatueta. No entanto, por pertencer a uma indústria que celebra a
estrela e o gênero, ela teve a oportunidade de construir sua imagem em
cima de estereótipos bem-sucedidos que remetem ao sucesso, poder e
individualidade. Assim, gradualmente, ela vai deixando de ser apenas o
reflexo de uma realidade profunda para finalmente fabricar uma nova
identidade.” “As
estrelas de cinema, ao receberem o prêmio da Academia, aceitam
involuntariamente a concessão de um valor simbólico à estatueta. São
esses heróis do consumo que ao possuírem este objeto vão transformar,
aos olhos do público, o Oscar em um produto desejável, posicionado
muito além de seu valor de uso. Primeiro pela identificação com que o
ganhou e, em segundo, porque este é um produto raro, não disponível
para venda. Um
pouco do que Holden chamou de “Febre do Oscar” advém desta escassez
do produto e da visibilidade de quem o ganhou. As próprias estrelas não
ficaram indiferentes à sedução alcançada pelo objeto. Emanuel Levy
cita, em The Winner is..., vários casos de atores e atrizes que nesta época
faziam campanhas caras (mas, discretas se comparadas com as que são
feitas atualmente) para consegui-lo. Dentre as várias declarações,
duas demonstram bem esta transição do Oscar de objeto decorativo para
objeto de desejo: Humphrey
Bogart, em 1951, depois de ganhar o Oscar de melhor ator por Uma
Aventura na África (1951): “A forma de sobreviver ao Oscar é
nunca tentar receber outro. Você viu o que acontece com alguns
ganhadores do Oscar. Eles passam o resto de suas vidas rejeitando
roteiros, enquanto buscam o papel para ganhar outro Oscar. Diabos,
espero nunca mais ser indicado. De agora em diante, quero papéis
triviais” (...) Mercedes McCambridge, em 1949, ao ganhar o Oscar de
melhor atriz coadjuvante por A
Grande Ilusão(1949): “O Oscar pertence a mim ou eu pertenço a
ele? Qual de nós dois estaria sempre em débito um com o outro?” (in
LEVY 1990:305) O
Oscar converte-se também em celebridade. Assim como a estrela, poucos
tem contato direto com ele. Sua relação com o público é sempre
mediada através de imagens reproduzidas nas mais variadas mídias. Ele
torna-se um material importante na divulgação dos filmes e, até mesmo
faz referência àquelas “pessoas admiráveis em que o sistema se
personifica [e que] são conhecidas por aquilo que não são”(DEBORD
1997:41).” “A
partir de 1950, a publicidade chega definitivamente à indústria do
cinema para multiplicar as mediações comunicacionais entre a produção
cinematográfica hollywoodiana e seu público cada vez mais exíguo. O
discurso publicitário vai retrabalhar, nos espectadores, estímulos
emocionais semelhantes aos processos de projeção-identificação já
bem desenvolvidos na década anterior. Vimos, inclusive, no item O
herói simpático, que a platéia desejava que o herói da tela
fosse protegido na segurança do happy
end. A diferença é que este discurso publicitário não vai estar
embutido na narrativa fílmica, mas agregado na forma de uma dramatização
especialmente desenvolvida para despertar as mais variadas sensações
no público antes mesmo dele conferir o filme pessoalmente. A emoção e
a curiosidade pára-textuais surgem como novos artifícios a serem
utilizados pela publicidade na busca do desenvolvimento de um novo
reflexo involuntário que levasse a sociedade de volta ao cinema. Em
1953, época da primeira transmissão ao vivo pela televisão, o Oscar já
fazia parte da cultura norte-americana há 25 anos e representava um
modelo de simulação que Baudrillard denominou de “síntese do
artificial” (1974:135-6). Muito utilizado em publicidade, a “síntese
do artificial” consiste da utilização do discurso tautológico para
exprimir uma realidade. No caso, a Academia instituiu “Oscar, ‘a
excelência cinematográfica’”. “Tudo nele é metáfora (...) a
repetição é que origina em toda a parte a causalidade eficaz”
(1974:135). Baudrillard ainda argumenta que “estes sintagmas publicitários
não proporcionam qualquer sentido, não são verdadeiros nem falsos –
mas eliminam precisamente o sentido e a prova. (...) O consumidor
consagrará apenas o acontecimento” (1974:136).” “Após o televisionamento da cerimônia do Oscar, as motivações que justificavam a busca pela estatueta estavam consolidadas porque também o público havia desenvolvido a habilidade de, inconscientemente, decodificar estas convenções criadas pela Academia. De acordo com Baudrillard, é a profusão publicitária que põe fim à fragilidade do objeto porque “qualquer objeto será considerado mau enquanto não resolver esta culpabilidade de não saber o que quero ou o que sou” (2002:180). Assim como dentro de um gênero de fantasia ou ficção não questionamos o fato de que um homem possa voar, esta busca por reconhecimento através de um objeto e a descomunal exaltação desta conquista só se tornam verossímeis aos olhos de quem aceitou deliberadamente o condicionamento para isto. Baudrillard destaca este poder condicionante que a comunicação de massa tem em criar a “lógica da fábula e da adesão. Não acreditamos nela e todavia a mantemos. (...) O indivíduo é sensível à temática latente de proteção e de gratificação” (2002:175-6).”
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