Todos os caminhos levam para casa

José Carlos Avellar


José Carlos Avellar é crítico de cinema, autor de livros sobre cinema brasileiro e latino americano, entre eles A ponte clandestina, teorias de cinema na América Latina da Edusp e Editora 34 e Deus e o diabo na terra do sol da coleção Artimídia da Editora Rocco. Integra o conselho de redação da revista Cinemais e dirige a disbuidora de filmes Martim 21.


No começo Um passaporte húngaro é mais som que imagem e, logo em suas primeiras palavras, o filme define com precisão o impulso de onde saiu e a estrutura que organiza suas imagens: ao telefone, uma voz feminina pergunta se uma pessoa com um avô húngaro tem direito a um passaporte húngaro . O som aparece antes mesmo da imagem. Na tela escura sem nada, só com as pequeninas letras brancas dos letreiros de apresentação: ouvimos o ruído de uma chamada telefônica, como se estivéssemos com o fone no ouvido, ou como se o viva-voz do telefone estivesse ativado. Quando alguém do outro lado da linha responde à chamada, a imagem propriamente dita se acende: vemos um telefone num quadro feito do ponto de vista de quem fez a ligação, como se estivéssemos de pé diante do telefone na mesa. Vemos bem do lugar de uma pessoa que fala ao telefone e que, por isso, toda ouvidos, vê sem dar atenção especial ao que vê - mais de olho na conversa do que está ali, ao alcance da vista. Um modo de ver equivalente ao gesto automático de desenhar enquanto se fala ao telefone, os olhos longe, sem ver sequer o que a mão risca no papel. No cinema, o espectador ouve o telefone com os olhos. Vê a imagem tal como ela foi construída: para mostrar a conversa e não o telefone. O quadro é uma espécie de sombra que revela de onde vem a luz. Olhamos o telefone, mas o que de fato vemos é a pessoa que fala fora de quadro e a que responde do outro lado da linha.

O telefone está em primeiro plano, mas não tem importância.
E assim, sem que nos demos conta disso, o filme nos ensina como devemos vê-lo. Quem fala ao telefone é Sandra Kogut, ao mesmo tempo a realizadora e a personagem central deste documentário, já que tudo gira em torno do processo que ela inicia para conseguir um 
passaporte húngaro  Personagem central, sim, mas para ser vista tal como vemos o telefone do plano inicial: com os olhos noutro lugar. Sandra está no centro da cena mas não é exatamente dela que o documentário se ocupa: embora em primeiro plano na história, ela está mais fora de quadro que dentro dele. Concretamente é assim mesmo que ela aparece na imagem: pedaço de mão que entrega um documento ou assina um papel, pedaço de rosto que se insinua num canto da tela, figura mais adivinhada a partir do som, de sua voz, do que efetivamente vista. E ainda, fora de quadro porque em nenhum instante ela se identifica, se apresenta claramente como a pessoa em busca do passaporte húngaro. Sem deixar de ser ela mesma, Sandra se filma como se fosse outra, como se fosse uma pessoa não identificada. Como o telefone do plano inicial, ela é no filme uma presença ausente. Está em primeiro plano na narrativa e, ao mesmo tempo, do ponto de vista da estrutura cinematográfica desta narrativa, está fora de quadro. Assim como o que vemos de verdade não é o telefone e sim a conversa sobre um passaporte húngaro, tomando o filme como todo, o que vemos, o que importa de verdade, não é Sandra: são as pessoas com quem ela conversa, os parentes, os funcionários da embaixada e toda a gente que, como ela, solicita um passaporte húngaro.

O documentário é, de fato, sobre todas essas pessoas. E também sobre muitas outras radicalmente fora de quadro, jogadas para fora do quadro da história no final da década de 1930, com uma letra K aplicada sobre seus passaportes.

Um
passaporte húngaro contém uma discussão sobre identidade. O filme, na verdade, é principalmente sobre essa questão, sobre a vontade de se auto-identificar, de buscar suas raízes. E esta investigação do que somos se realiza no espaço particular em que a questão da identidade se discute entre nós. Não se trata de encontrar o que precisamente nos identifica, mas de, contraditoriamente, trabalhar para aumentar a indefinição e divertir-se com a possibilidade de poder contar, ao mesmo tempo, com duas ou mais diferentes raízes, entrelaçadas e todas igualmente constitutivas de nossa identidade que seria, assim, por natureza, múltipla, impossível de se definir. O pedido da brasileira com um avô húngaro parece partir de uma vontade de construir uma identidade plural, de um desejo de ganhar um passaporte húngaro sem perder o brasileiro. Ser outra sem deixar de ser ela mesma. Pertencer a um país e a outro ao mesmo tempo, como imagem em fusão. Como observa um funcionário do Arquivo Nacional, ³passaporte, quanto mais melhor. E, como logo acrescenta outro: - Ter duas cidadanias é como ter duas roupas, você despe uma e veste a outra (2).
O pedido de um passaporte europeu não nasceu de um possível mal-estar com a nacionalidade brasileira, nem de uma pressão como aquela sofrida pela avó, austríaca, que se tornou húngara com o casamento, e que se viu obrigada a deixar a Hungria e, expatriada, migrou para o Brasil em 1937, às vésperas da Segunda Guerra Mundial.
Como quem decide levar adiante uma idéia meio abandonada num canto da cabeça, Sandra começa a levantar os documentos necessários e, aparentemente, vai ficando mais e mais interessada na história de seus avós do que propriamente em conseguir o passaporte. É como se o olhar perdesse de vista o ponto de chegada e se concentrasse nos muitos detalhes que vão sendo descobertos, quase ao acaso no meio do caminho.

O resultado está na procura e não no encontro. Na busca. Na investigação. No meio do caminho. No movimento, e não no ponto em que ele se interrompe. É o que sugere a construção do filme. E o que sugere também a referência à letra de uma canção bonita, em alemão, lembrada pela avó de Sandra e inserida no intervalo em que, no trem, já no final do filme, a cena fica vazia enquanto o policial de fronteira examina o passaporte fora de quadro. Na canção bonita alguém pergunta a um caminhante: Para onde você vai?, e ouve a resposta alegre: para casa. Pergunta de onde você vem e ouve a resposta triste: - De casa. Um
passaporte húngaro se situa aqui, entre o ir para casa e o vir de casa. Investigando. Descobrindo no processo.

Importa o meio do caminho: a aventura da brasileira neta de húngaros se transforma numa conversa (entre outras questões) sobre as dificuldades de judeus húngaros para escapar do nazismo e conseguir um visto para o Brasil. E, uma vez conseguido o visto, sobre as dificuldades de desembarcar no Brasil. Sandra sai à procura de um passaporte e encontra a avó, Mathilde Lajta, um pedaço pouco conhecido da história de sua avó. A avó enquanto tema de filme e enquanto sugestão para uma composição cinematográfica. A lembrança da canção bonita em alemão, o breve comentário sobre como sente sua condição, e o que eu trouxe de lá está diluído nesta parte daqui podem ser tomados como uma imagem da construção de uma identidade múltipla - questão todo o tempo presente nas entrelinhas desta procura de um
passaporte húngaro. Não por acaso estas duas breves falas estão montadas no final do filme, quase como conclusão, fecho, ponto de chegada. Sandra está voltando para casa, no trem, no meio do caminho, trazendo algumas coisas de lá para serem diluídas nas daqui.
E o que a avó de Sandra diz, então, importa tanto pelo que ela diz quanto pelo modo de dizer. Falando em português, mas aqui e ali, construindo as frases como quem pensa em alemão, a austríaca, que se tornou húngara com o casamento e decidiu viver para sempre no Brasil, ao se lembrar da canção bonita em alemão, insere na frase uma palavra alemã, Wanderer, no lugar de caminhante ou andarilho. Diz: - se a gente pergunta ao Wanderer para onde você vai? Š Não propriamente um ato falho, nem um equívoco, mas um acertado modo de dizer o complexo da questão que a neta começava a enfrentar. wandern, pode ser traduzido como viajar a pé, caminhar, mudar-se de um lugar para outro, migrar. Uma identidade wandern.

A palavra alemã no meio de uma frase em português é um acaso especialmente significativo neste filme, que começa com uma brasileira em Paris, falando ao telefone em francês, com húngaros. Especialmente significativo nestas conversas sobre gente levada a mudar de país, mudar de língua, a mudar de nome, por uma pressão qualquer - assim como contam os parentes de Sandra em Budapeste: mudar o nome judeu por um nome alemão, mudar o nome alemão por um nome italiano. As conversas sempre cheias de sotaques e em diversas línguas, português, inglês, francês, húngaro, hebraico, reafirmam a idéia de uma identidade múltipla, de um meio do caminho, do mudar-se todo o tempo de um lugar para outro, dentro da mesma fala, como um sinal da identidade. Para conseguir a cidadania húngara é necessário falar húngaro preencher corretamente um formulário, prestar um juramento... Preencher corretamente, falar húngaro, diz o funcionário da embaixada, mas logo, com um gesto, sugere que corretamente, quer dizer, não. Não é tão necessário assim.

No começo temos não apenas uma mas duas conversas ao telefone. E dois telefones. Conversas em francês, montadas lado a lado mas feitas em momentos e em telefones diferentes. A primeira imagem do filme mostra um telefone; a segunda, outro mais. Num qualquer dia de maio de 1999, Sandra, em Paris, liga para a embaixada da Hungria. A voz masculina que atende acha que não, que ela não tem direito a ter um passaporte. A voz feminina que atende a outra chamada pergunta se ela poderia reunir documentos capazes de provar a origem húngara de seus avós.
Sandra pergunta numa terceira pessoa, em aberto, como se não estivesse falando de si mesma - Uma pessoa com um avô húngaro tem direito a um
passaporte húngaro?. E depois de uma breve pausa (imagens de trilhos filmadas de um trem em movimento e sublinhadas por uma frase musical breve e triste) vai ao encontro da avó, que a recebe sorridente: - fala, fala, fala filhinha. O que Sandra fala, então, para o espectador, esclarece a pergunta feita ao telefone: - Lembra quando a gente falou que poderia ser uma boa idéia eu ter um passaporte húngaro? Sandra, também aqui está fora de quadro. Vemos a avó. Sandra é quem abre e conduz a conversa com outras perguntas, ela é que está no centro da cena, mas na imagem, visível, em primeiro plano, está a avó. Sandra é a câmera.

As imagens de Um
passaporte húngaro são quase todas parecidas com as que mostram os dois telefones no início e com esta que mostra a avó - e logo os detalhes dos velhos passaportes, fotos e documentos da década de 1930. Nestas imagens, como em várias outras, a pessoa que filma participa da cena com a câmera na mão. Participa, e não assim como um cinegrafista que se insere no meio de uma ação para melhor filmá-la. Sandra, mais do que observar, age na cena que está filmando. Filma com um pequeno vídeo digital, e aparentemente as pessoas que estão sendo filmadas nem percebem a câmera; ou, se percebem, acham natural que ela esteja ali, como uma caneta, bolsa, livro, câmera fotográfica amadora, cd player, portátil, na mão de Sandra; natural que a câmera esteja ali como um utilitário compacto ou como gente viva quase de verdade - um parente, alguém que veio com ela e testemunha o pedido. As pessoas filmadas agem como quem conversa em presença de uma terceira (pessoa?) que, discreta, silenciosa, só interfere com seu olhar silencioso. Sem elas, sem Sandra e sem esta terceira personagem, a câmera, a cena seria diferente, ou talvez nem existisse. Na verdade, trata-se de um jogo em que a intervenção é de mão dupla. Sandra, a realizadora, age primeiro como uma personagem de seu filme. Lida com a câmera como se estivesse também sendo observada pela objetiva. Busca um passaporte húngaro e documenta o processo - que se estendeu por dois anos. Vai aos consulados, visita os familiares, com uma câmera, filmando sempre, quando, e como é possível. Documenta as cenas vivas de verdade que se produzem e que, de um certo modo, são também uma cena cinematográfica que ela mesma provocou. No filme existem, sim, imagens filmadas por dois cinegrafistas, Florent Jullien e Florian Bouchet. Mas os dois são levados a filmar como se tivessem os mesmos limites de mobilidade de Sandra, na cena e filmando a cena. Na maior parte do tempo é ela mesma que filma, porque o filme, tal como concebido por ela, só teria sentido se ela mesma o filmasse. A idéia de pedir e de documentar o pedido de um passaporte húngaro parece ter surgido ao mesmo tempo, em fusão, uma dentro da outra. E observando a questão de um ponto de vista exclusivamente cinematográfico, e permitindo-se um exagero de cinemaníaco, é possível até supor que a idéia de pedir um passaporte húngaro tenha surgido primeiro como idéia de filme. Um diário, um álbum fotográfico, um bloco de anotações, com a agilidade, o direto e o espontâneo permitidos pelos equipamentos de vídeo digital, aprendidos com a tradição do cinema documentário.

Deste modo, por exemplo, não há nenhuma narração, nenhuma interpretação do que vamos vendo. As situações filmadas se explicam por si mesmas. Trata-se de nos levar a viver (numa outra dimensão, na de espectador de cinema) as entrevistas, as pesquisas, os encontros e desencontros vividos por Sandra durante a busca do passaporte. Viver na condição de espectador, fazendo de conta que vive exatamente daquele mesmo modo que ela viveu os encontros no instante de filmagem. Para tanto, o filme guarda na imagem as pausas que ocorreram naturalmente no meio de cada conversa, e estabelece, ao longo da narração pontuações visuais para representar a passagem de tempo entre uma e outra.

São planos não propriamente informativos - pelo menos não informativos em primeira instância: ruas, estações ferroviárias, gente passando, carros, bondes, trens e barcos, lojas, planos fixos ou travellings, câmera no tripé, câmera na mão. Recife, Caruaru, Rio de Janeiro, Budapeste. A aventura não avança nestes instantes. A imagem, como frase musical, passa uma sensação que fica ressoando, que se prolonga sobre as cenas seguintes.

Parte de Um
passaporte húngaro, com certeza, resulta das possibilidades de trabalho com a imagem digital: a câmera pequenina, capaz de filmar continuamente por longo tempo e quase sem luz alguma, graças ao controle automático do foco e da exposição, sugere uma relação mais íntima com a situação filmada. Não por acaso, quase ao mesmo tempo, chega aos cinemas outro documentário brasileiro em que o realizador filma a si mesmo e desse mesmo modo, no centro da história mas fora de quadro: 33, de Kiko Goifman. Como no filme de Sandra, no começo um texto breve de Kiko resume o projeto: ele diz que tem 33 anos, que foi adotado e que naquele dia, 9 de setembro de 2001, decidira começar a remexer no passado, ir em busca de sua mãe biológica por 33 dias. Duas diferentes maneiras de discutir a construção da identidade, mas um impulso semelhante: assim como Sandra busca um passaporte húngaro mas não quer perder a nacionalidade brasileira, Kiko busca a mãe biológica, mas não quer perder a sua mãe verdadeira, a que o adotou e educou. E ainda: estes dois filmes que se dedicam mais à procura que ao encontro têm um certo quê de investigação feita à maneira de filme policial. O espectador acompanha a investigação que se passa na tela sem ter idéia do que vai encontrar no final da história.

Outra parte de Um
passaporte húngaro, com igual certeza, resulta de idéias esboçadas na década de 60 (o cinema como busca/afirmação/constituição da identidade) e de construções como a de Cabra marcado para morrer (1984), em que o realizador, Eduardo Coutinho, se encontra também no centro da história e fora de quadro: vinte anos depois, no Nordeste, em busca dos companheiros de trabalho no filme interrompido pelo golpe militar de 1964. Ou construções como a de Bananas is my business (1995), onde Helena Solberg narra a história de Carmen Miranda em Hollywood com um texto na primeira pessoa, quase como uma projeção de sua própria experiência de brasileira trabalhando nos Estados Unidos, fora de quadro mas dentro da história.

Na verdade, convém retomar uma afirmação anterior, a de que a idéia de pedir um
passaporte húngaro parece ter surgido primeiro como idéia de filme, e dizer de forma mais radical que tal projeto só poderia mesmo surgir numa expressão de tal modo em constante enfrentamento com sua própria identidade quanto o cinema. Ou seja: antes mesmo de ser o que efetivamente e de verdade é, o filme de Sandra Kogut, como o de Kiko Goifman, e como antes deles os de Eduardo Coutinho e de Helena Solberg, são filmes sobre o cinema. Ao mesmo tempo em que nos revelam as buscas particulares em que seus realizadores estão empenhados, representam nestas buscas a condição de espectador e a natureza do cinema. Durante a projeção, digamos assim, um Wanderer que renuncia à sua identidade como o passaporte necessário para melhor entrar no filme, o espectador está diante de uma expressão que muito naturalmente troca a todo instante de cidadania, que não cessa de pedir um passaporte ao teatro, à literatura, à música, à pintura, movendo-se todo o tempo para além de suas fronteiras, para fora dos limites do quadro como se estivesse cantando à sua maneira a canção bonita em alemão, o cinema é um Wanderer sempre sorridente, porque, dono de múltiplas identidades, todos os caminhos o levam para casa.