No começo Um
passaporte húngaro é mais som que imagem e, logo em suas
primeiras palavras, o filme define com precisão o impulso de
onde saiu e a estrutura que organiza suas imagens: ao
telefone, uma voz feminina pergunta se uma pessoa com um avô
húngaro tem direito a um passaporte húngaro . O som
aparece antes mesmo da imagem. Na tela escura sem nada, só
com as pequeninas letras brancas dos letreiros de apresentação:
ouvimos o ruído de uma chamada telefônica, como se estivéssemos
com o fone no ouvido, ou como se o viva-voz do telefone
estivesse ativado. Quando alguém do outro lado da linha
responde à chamada, a imagem propriamente dita se acende:
vemos um telefone num quadro feito do ponto de vista de quem
fez a ligação, como se estivéssemos de pé diante do
telefone na mesa. Vemos bem do lugar de uma pessoa que fala ao
telefone e que, por isso, toda ouvidos, vê sem dar atenção
especial ao que vê - mais de olho na conversa do que está
ali, ao alcance da vista. Um modo de ver equivalente ao gesto
automático de desenhar enquanto se fala ao telefone, os olhos
longe, sem ver sequer o que a mão risca no papel. No cinema,
o espectador ouve o telefone com os olhos. Vê a imagem tal
como ela foi construída: para mostrar a conversa e não o
telefone. O quadro é uma espécie de sombra que revela de
onde vem a luz. Olhamos o telefone, mas o que de fato vemos é
a pessoa que fala fora de quadro e a que responde do outro
lado da linha.
O telefone está em primeiro plano, mas não tem importância.
E assim, sem que nos demos conta disso, o filme nos ensina
como devemos vê-lo. Quem fala ao telefone é Sandra Kogut, ao
mesmo tempo a realizadora e a personagem central deste
documentário, já que tudo gira em torno do processo que ela
inicia para conseguir um
passaporte húngaro Personagem central, sim, mas
para ser vista tal como vemos o telefone do plano inicial: com
os olhos noutro lugar. Sandra está no centro da cena mas não
é exatamente dela que o documentário se ocupa: embora em
primeiro plano na história, ela está mais fora de quadro que
dentro dele. Concretamente é assim mesmo que ela aparece na
imagem: pedaço de mão que entrega um documento ou assina um
papel, pedaço de rosto que se insinua num canto da tela,
figura mais adivinhada a partir do som, de sua voz, do que
efetivamente vista. E ainda, fora de quadro porque em nenhum
instante ela se identifica, se apresenta claramente como a
pessoa em busca do passaporte
húngaro. Sem deixar de ser ela mesma, Sandra se filma como se
fosse outra, como se fosse uma pessoa não identificada. Como
o telefone do plano inicial, ela é no filme uma presença
ausente. Está em primeiro plano na narrativa e, ao mesmo
tempo, do ponto de vista da estrutura cinematográfica desta
narrativa, está fora de quadro. Assim como o que vemos de
verdade não é o telefone e sim a conversa sobre um passaporte
húngaro, tomando o filme como todo, o que vemos, o que
importa de verdade, não é Sandra: são as pessoas com quem
ela conversa, os parentes, os funcionários da embaixada e
toda a gente que, como ela, solicita um passaporte
húngaro.
O documentário é, de fato, sobre todas essas pessoas. E também
sobre muitas outras radicalmente fora de quadro, jogadas para
fora do quadro da história no final da década de 1930, com
uma letra K aplicada sobre seus passaportes.
Um passaporte húngaro contém
uma discussão sobre identidade. O filme, na verdade, é
principalmente sobre essa questão, sobre a vontade de se
auto-identificar, de buscar suas raízes. E esta investigação
do que somos se realiza no espaço particular em que a questão
da identidade se discute entre nós. Não se trata de
encontrar o que precisamente nos identifica, mas de,
contraditoriamente, trabalhar para aumentar a indefinição e
divertir-se com a possibilidade de poder contar, ao mesmo
tempo, com duas ou mais diferentes raízes, entrelaçadas e
todas igualmente constitutivas de nossa identidade que seria,
assim, por natureza, múltipla, impossível de se definir. O
pedido da brasileira com um avô húngaro parece partir de uma
vontade de construir uma identidade plural, de um desejo de
ganhar um passaporte
húngaro sem perder o brasileiro. Ser outra sem deixar de ser
ela mesma. Pertencer a um país e a outro ao mesmo tempo, como
imagem em fusão. Como observa um funcionário do Arquivo
Nacional, ³passaporte, quanto mais melhor. E, como logo
acrescenta outro: - Ter duas cidadanias é como ter duas
roupas, você despe uma e veste a outra (2).
O pedido de um passaporte europeu não nasceu de um possível
mal-estar com a nacionalidade brasileira, nem de uma pressão
como aquela sofrida pela avó, austríaca, que se tornou húngara
com o casamento, e que se viu obrigada a deixar a Hungria e,
expatriada, migrou para o Brasil em 1937, às vésperas da
Segunda Guerra Mundial.
Como quem decide levar adiante uma idéia meio abandonada num
canto da cabeça, Sandra começa a levantar os documentos
necessários e, aparentemente, vai ficando mais e mais
interessada na história de seus avós do que propriamente em
conseguir o passaporte. É como se o olhar perdesse de vista o
ponto de chegada e se concentrasse nos muitos detalhes que vão
sendo descobertos, quase ao acaso no meio do caminho.
O resultado está na procura e não no encontro. Na busca. Na
investigação. No meio do caminho. No movimento, e não no
ponto em que ele se interrompe. É o que sugere a construção
do filme. E o que sugere também a referência à letra de uma
canção bonita, em alemão, lembrada pela avó de Sandra e
inserida no intervalo em que, no trem, já no final do filme,
a cena fica vazia enquanto o policial de fronteira examina o
passaporte fora de quadro. Na canção bonita alguém pergunta
a um caminhante: Para onde você vai?, e ouve a resposta
alegre: para casa. Pergunta de onde você vem e ouve a
resposta triste: - De casa. Um passaporte
húngaro se situa aqui, entre o ir para casa e o vir de casa.
Investigando. Descobrindo no processo.
Importa o meio do caminho: a aventura da brasileira neta de húngaros
se transforma numa conversa (entre outras questões) sobre as
dificuldades de judeus húngaros para escapar do nazismo e
conseguir um visto para o Brasil. E, uma vez conseguido o
visto, sobre as dificuldades de desembarcar no Brasil. Sandra
sai à procura de um passaporte e encontra a avó, Mathilde
Lajta, um pedaço pouco conhecido da história de sua avó. A
avó enquanto tema de filme e enquanto sugestão para uma
composição cinematográfica. A lembrança da canção bonita
em alemão, o breve comentário sobre como sente sua condição,
e o que eu trouxe de lá está diluído nesta parte daqui
podem ser tomados como uma imagem da construção de uma
identidade múltipla - questão todo o tempo presente nas
entrelinhas desta procura de um passaporte
húngaro. Não por acaso estas duas breves falas estão
montadas no final do filme, quase como conclusão, fecho,
ponto de chegada. Sandra está voltando para casa, no trem, no
meio do caminho, trazendo algumas coisas de lá para serem
diluídas nas daqui.
E o que a avó de Sandra diz, então, importa tanto pelo que
ela diz quanto pelo modo de dizer. Falando em português, mas
aqui e ali, construindo as frases como quem pensa em alemão,
a austríaca, que se tornou húngara com o casamento e decidiu
viver para sempre no Brasil, ao se lembrar da canção bonita
em alemão, insere na frase uma palavra alemã, Wanderer,
no lugar de caminhante ou andarilho. Diz: - se a gente
pergunta ao Wanderer para onde você vai? Š Não
propriamente um ato falho, nem um equívoco, mas um acertado
modo de dizer o complexo da questão que a neta começava a
enfrentar. wandern, pode ser traduzido como viajar a pé,
caminhar, mudar-se de um lugar para outro, migrar. Uma
identidade wandern.
A palavra alemã no meio de uma frase em português é um
acaso especialmente significativo neste filme, que começa com
uma brasileira em Paris, falando ao telefone em francês, com
húngaros. Especialmente significativo nestas conversas sobre
gente levada a mudar de país, mudar de língua, a mudar de
nome, por uma pressão qualquer - assim como contam os
parentes de Sandra em Budapeste: mudar o nome judeu por um
nome alemão, mudar o nome alemão por um nome italiano. As
conversas sempre cheias de sotaques e em diversas línguas,
português, inglês, francês, húngaro, hebraico, reafirmam a
idéia de uma identidade múltipla, de um meio do caminho, do
mudar-se todo o tempo de um lugar para outro, dentro da mesma
fala, como um sinal da identidade. Para conseguir a cidadania
húngara é necessário falar húngaro preencher corretamente
um formulário, prestar um juramento... Preencher
corretamente, falar húngaro, diz o funcionário da embaixada,
mas logo, com um gesto, sugere que corretamente, quer dizer, não.
Não é tão necessário assim.
No começo temos não apenas uma mas duas conversas ao
telefone. E dois telefones. Conversas em francês, montadas
lado a lado mas feitas em momentos e em telefones diferentes.
A primeira imagem do filme mostra um telefone; a segunda,
outro mais. Num qualquer dia de maio de 1999, Sandra, em
Paris, liga para a embaixada da Hungria. A voz masculina que
atende acha que não, que ela não tem direito a ter um
passaporte. A voz feminina que atende a outra chamada pergunta
se ela poderia reunir documentos capazes de provar a origem húngara
de seus avós.
Sandra pergunta numa terceira pessoa, em aberto, como se não
estivesse falando de si mesma - Uma pessoa com um avô húngaro
tem direito a um passaporte
húngaro?. E depois de uma breve pausa (imagens de trilhos
filmadas de um trem em movimento e sublinhadas por uma frase
musical breve e triste) vai ao encontro da avó, que a recebe
sorridente: - fala, fala, fala filhinha. O que Sandra fala,
então, para o espectador, esclarece a pergunta feita ao
telefone: - Lembra quando a gente falou que poderia ser uma
boa idéia eu ter um passaporte
húngaro? Sandra, também aqui está fora de quadro. Vemos a
avó. Sandra é quem abre e conduz a conversa com outras
perguntas, ela é que está no centro da cena, mas na imagem,
visível, em primeiro plano, está a avó. Sandra é a câmera.
As imagens de Um passaporte
húngaro são quase todas parecidas com as que mostram os
dois telefones no início e com esta que mostra a avó - e
logo os detalhes dos velhos passaportes, fotos e documentos da
década de 1930. Nestas imagens, como em várias outras, a
pessoa que filma participa da cena com a câmera na mão.
Participa, e não assim como um cinegrafista que se insere no
meio de uma ação para melhor filmá-la. Sandra, mais do que
observar, age na cena que está filmando. Filma com um pequeno
vídeo digital, e aparentemente as pessoas que estão sendo
filmadas nem percebem a câmera; ou, se percebem, acham
natural que ela esteja ali, como uma caneta, bolsa, livro, câmera
fotográfica amadora, cd player, portátil, na mão de
Sandra; natural que a câmera esteja ali como um utilitário
compacto ou como gente viva quase de verdade - um parente,
alguém que veio com ela e testemunha o pedido. As pessoas
filmadas agem como quem conversa em presença de uma terceira
(pessoa?) que, discreta, silenciosa, só interfere com seu
olhar silencioso. Sem elas, sem Sandra e sem esta terceira
personagem, a câmera, a cena seria diferente, ou talvez nem
existisse. Na verdade, trata-se de um jogo em que a intervenção
é de mão dupla. Sandra, a realizadora, age primeiro como uma
personagem de seu filme. Lida com a câmera como se estivesse
também sendo observada pela objetiva. Busca um passaporte
húngaro e documenta o processo - que se estendeu por dois
anos. Vai aos consulados, visita os familiares, com uma câmera,
filmando sempre, quando, e como é possível. Documenta as
cenas vivas de verdade que se produzem e que, de um certo
modo, são também uma cena cinematográfica que ela mesma
provocou. No filme existem, sim, imagens filmadas por dois
cinegrafistas, Florent Jullien e Florian Bouchet. Mas os dois
são levados a filmar como se tivessem os mesmos limites de
mobilidade de Sandra, na cena e filmando a cena. Na maior
parte do tempo é ela mesma que filma, porque o filme, tal
como concebido por ela, só teria sentido se ela mesma o
filmasse. A idéia de pedir e de documentar o pedido de um passaporte
húngaro parece ter surgido ao mesmo tempo, em fusão, uma
dentro da outra. E observando a questão de um ponto de vista
exclusivamente cinematográfico, e permitindo-se um exagero de
cinemaníaco, é possível até supor que a idéia de pedir um
passaporte húngaro tenha
surgido primeiro como idéia de filme. Um diário, um álbum
fotográfico, um bloco de anotações, com a agilidade, o
direto e o espontâneo permitidos pelos equipamentos de vídeo
digital, aprendidos com a tradição do cinema documentário.
Deste modo, por exemplo, não há nenhuma narração, nenhuma
interpretação do que vamos vendo. As situações filmadas se
explicam por si mesmas. Trata-se de nos levar a viver (numa
outra dimensão, na de espectador de cinema) as entrevistas,
as pesquisas, os encontros e desencontros vividos por Sandra
durante a busca do passaporte. Viver na condição de
espectador, fazendo de conta que vive exatamente daquele mesmo
modo que ela viveu os encontros no instante de filmagem. Para
tanto, o filme guarda na imagem as pausas que ocorreram
naturalmente no meio de cada conversa, e estabelece, ao longo
da narração pontuações visuais para representar a passagem
de tempo entre uma e outra.
São planos não propriamente informativos - pelo menos não
informativos em primeira instância: ruas, estações ferroviárias,
gente passando, carros, bondes, trens e barcos, lojas, planos
fixos ou travellings, câmera no tripé, câmera na mão.
Recife, Caruaru, Rio de Janeiro, Budapeste. A aventura não
avança nestes instantes. A imagem, como frase musical, passa
uma sensação que fica ressoando, que se prolonga sobre as
cenas seguintes.
Parte de Um passaporte
húngaro, com certeza, resulta das possibilidades de
trabalho com a imagem digital: a câmera pequenina, capaz de
filmar continuamente por longo tempo e quase sem luz alguma,
graças ao controle automático do foco e da exposição,
sugere uma relação mais íntima com a situação filmada. Não
por acaso, quase ao mesmo tempo, chega aos cinemas outro
documentário brasileiro em que o realizador filma a si mesmo
e desse mesmo modo, no centro da história mas fora de quadro:
33, de Kiko Goifman. Como no filme de Sandra, no começo um
texto breve de Kiko resume o projeto: ele diz que tem 33 anos,
que foi adotado e que naquele dia, 9 de setembro de 2001,
decidira começar a remexer no passado, ir em busca de sua mãe
biológica por 33 dias. Duas diferentes maneiras de discutir a
construção da identidade, mas um impulso semelhante: assim
como Sandra busca um passaporte
húngaro mas não quer perder a nacionalidade brasileira, Kiko
busca a mãe biológica, mas não quer perder a sua mãe
verdadeira, a que o adotou e educou. E ainda: estes dois
filmes que se dedicam mais à procura que ao encontro têm um
certo quê de investigação feita à maneira de filme
policial. O espectador acompanha a investigação que se passa
na tela sem ter idéia do que vai encontrar no final da história.
Outra parte de Um passaporte
húngaro, com igual certeza, resulta de idéias esboçadas
na década de 60 (o cinema como busca/afirmação/constituição
da identidade) e de construções como a de Cabra marcado
para morrer (1984), em que o realizador, Eduardo Coutinho,
se encontra também no centro da história e fora de quadro:
vinte anos depois, no Nordeste, em busca dos companheiros de
trabalho no filme interrompido pelo golpe militar de 1964. Ou
construções como a de Bananas is my business (1995),
onde Helena Solberg narra a história de Carmen Miranda em
Hollywood com um texto na primeira pessoa, quase como uma
projeção de sua própria experiência de brasileira
trabalhando nos Estados Unidos, fora de quadro mas dentro da
história.
Na verdade, convém retomar uma afirmação anterior, a de que
a idéia de pedir um passaporte
húngaro parece ter surgido primeiro como idéia de filme, e
dizer de forma mais radical que tal projeto só poderia mesmo
surgir numa expressão de tal modo em constante enfrentamento
com sua própria identidade quanto o cinema. Ou seja: antes
mesmo de ser o que efetivamente e de verdade é, o filme de
Sandra Kogut, como o de Kiko Goifman, e como antes deles os de
Eduardo Coutinho e de Helena Solberg, são filmes sobre o
cinema. Ao mesmo tempo em que nos revelam as buscas
particulares em que seus realizadores estão empenhados,
representam nestas buscas a condição de espectador e a
natureza do cinema. Durante a projeção, digamos assim, um
Wanderer que renuncia à sua identidade como o passaporte
necessário para melhor entrar no filme, o espectador está
diante de uma expressão que muito naturalmente troca a todo
instante de cidadania, que não cessa de pedir um passaporte
ao teatro, à literatura, à música, à pintura, movendo-se
todo o tempo para além de suas fronteiras, para fora dos
limites do quadro como se estivesse cantando à sua maneira a
canção bonita em alemão, o cinema é um Wanderer sempre
sorridente, porque, dono de múltiplas identidades, todos os
caminhos o levam para casa.