CRISTINA MENDES, balangas e balangandãs

Devo começar invocando as divindades:
Meu Pai Oxalá,
é o rei, venha me valer ...”
(De uma canção popular)

 O Sul, tão acostumado às suas referências européias normalmente esquece que também tem a mesma origem do Brasil onde os rituais afro-brasileiros são de grande importância. Cristina Mendes com estas suas obras recentes, que na sua aparência, se afastam das práticas pictóricas de origem erudita, nos chama a atenção para a idéia do sincretismo que está na origem das vanguardas brasileiras na primeira metade do Século XX, naquele momento este sincretismo aparecia como traço de união tanto na antropofagia de Tarsila, como no barroquismo de Krajcberg, na “entropia tropical” de Cícero Dias, no pluralismo de Flávio de Carvalho e mesmo no tropicalismo de Hélio Oiticica, para citarmos somente alguns artistas.

Há um deslocamento de significados e a procura de um diálogo entre o eu e o mito, dentro do qual a forte carga simbólica se refere às energias da natureza, retiradas dos rituais de Umbanda e Candomblé, passando pelas experiências contemporâneas de uma arte que contém em sua memória as experiências da arte povera, na manipulação do elemento primitivo e a utilização do espaço que são próprias do minimalismo e do conceitualismo mas que não esconde o hieratismo das “potências religiosas”.

                   A sua obra parece conter, nítidamente, três vertentes.

Inicialmente se destaca o conhecimento que a artista possui dos movimentos da arte contemporâneas e nos quais ela operou desde sua formação na Escola de Música e Belas Artes do Paraná mas, há uma vontade de sair do processo intelectualizado, da linguagem cifrada da pintura, de conseguir “resolver alguma coisa com a pintura mas que não seja pintura”. Ela procura enfim uma liberdade com relação ao que chamamos de estética ocidental, ela busca um ethos, uma identidade (individual ou coletiva) que se ligue à idéia de sagrado, de um animismo, mas cujas obras resultantes provocam a emoção estética, mesmo que o espectador não tenha as premissas necessárias para o conhecimento do valor simbólico delas. É a artista mesmo quem afirma que agora se sente mais livre, afastada do jugo da pintura.

Uma segunda vertente está presente no caráter decorativo da obra, num certo “flower power” do movimento hippie, que se manifestava sob o signo do amor e da flor, no qual aqueles jovens se recusavam à alienação fugindo ou retornando à natureza: aos princípios elementares da natureza como uma experiência além do visível. Eles reinventaram a beleza, em crise nos anos 60, criando uma estética vestimental e gráfica, presa ao corpo sem esconder a sensualidade e o prazer de viver.

As “Balangas” são colares, são adornos corporais, de materiais coletados, outros são feitos pela própria artista ou então presenteados por amigos – todos carregados de elementos simbólicos pertencentes a uma comunidade, a um “não estou sozinha”, presentes e oferendas, mas objetos que também tem uma história de pertencerem a um universo mágico, ao universo telúrico, terem vindo da “terra” e estarem procurando um “céu”.

A terra é o arquétipo da totalidade, é nela que existem as polaridades e as potencialidades de todos os outros elementos e é nela que Cristina procura esta certa “intimidade material” como uma manifestação da sua imaginação mística.

Gaston Bachelard nos fala dos quentes devaneios noturnos provenientes do seio telúrico da terra, local de repouso, a terra noturna, o local simbólico da morte e a sua reação com os devaneios telúricos da vontade, da terra diurna, que exige todos os utensílios, seja ele o cinzel do escultor ou a espada do defensor: os devaneios do trabalho.

Cristina Mendes realiza a síntese entre estas raízes telúricas e os valores universais através de soluções formais que se inscrevem na arte contemporânea.

As Balangas ainda lembram o trabalho de tecelagem das mulheres, trabalho essencialmente feminino: “...Ponto de uma laçada, meio ponto, sob o vidrilho azul do abajur, pontas de agulha que revolvem a memória, menina de tranças no espelho dourado da sala, ...” (Dalton Trevisan, “Ponto de Crochê”)

Sua terceira vertente é a mais clara, mas a mais difícil de ser interpretada, necessita a utilização do seu código pessoal e o conhecimento de uma tradição provavelmente Iarubá que deu origem aos rituais afro-brasileiros contidos no Candomblé e na Umbanda, composto de elementos não arbitrários, legados neo-africanos, emblemas coletivos de um mundo pré-verbal que quer conservar a forma arcaica de sua origem.

Origina-se nos colares de miçangas, adornos corporais, que tem como resultado um produto poético da religiosidade, um mundo poético do popular. Os fundamentos de sua arte são extra-artísticos, são exercícios existenciais e espirituais, procurando colocar o homem em contato consigo mesmo. Eles contém buzios, cavalos marinhos, cerâmica, chifres, conchas, contas, dentes, frutinhas, fibras vegetais, fios de cobre, ossos, penas, tranças, tules, etc., materiais utilizados no seu sentido do imaterial e que se integram por justaposição. Não são intelectualizados, quando sua origem pode estar nos “pontos riscados” da Umbanda, mas intelectualizam-se quando reconhecemos terem partido também dos movimentos concretos ou da abstração geométrica. Sua sintaxe vem das estruturas geométricas, mas a sua problemática é de conteúdo, de valores culturais, de misticismo que Cristina resolve penetrando nos elementos internos das religiões populares: as sete linhas da Umbanda com a evocação dos Orixás, dos caboclos e dos pretos velhos, com resultados bem humorados que lembram a canção:

Quem não tem balangandãs
                    Não vai ao Bonfim!

                    Referências à todos os amuletos que afastam os “mau olhados”.

Os desenhos que acompanham seus trabalhos, seus objetos, nos auxiliam na decifração e mostram que o que está ali não é fruto do acaso. Mas são obras pensadas e já tem sua origem poética desde o início. O desenho é o processo de criação, é a idéia:

Miçangas azuis para o mar
                    amarelo para o sol
                    laranja para seus raios              
                   
arames para dar a forma.

O seu exorcismo parte das referências animistas para buscar a organização racional da forma, ela visa através do caminho gráfico refazer o caminho intelectual do processo de geração da obra. Estão lá presentes, nos desenhos ou nos objetos, os cheios e os vazios, os quadrados, os triângulos, os trapézios, as linhas retas da razão, os círculos. Os trabalhos são descritivos, procuram o diálogo direto com o espectador. É humano, com sua origem mística, pois tem referência nas pessoas seja no seu caráter individual ou coletivo, estejam elas próximas ou afastadas.

O percurso da exposição é o do ritual, começa pelo “despacho” dedicado ao Exú, concluindo com a saudação à Xangô e Oxalá, divindades do poder, da força, da justiça e da liberdade, homenagem à criação: “O raio branco que fecunda.”

Esse raio branco conduz à evolução, à elevação; por trás da matéria, no seio da matéria que oculta o espírito criador.” (Kandinsky, “A questão da forma”)

Fernando A. F. Bini
Professor de História da Arte. Crítico de Arte
Outubro de 2001

Contato com Cristina Mendes: [email protected]