Entre o Globo e o Guerreiro de Ouro
por Tom Lisboa

 

Na minha mera posição de espectador e pesquisador de cinema, assistir à 62ª cerimônia de entrega do Globo de Ouro, criado pela Hollywood Foreign Press Association, me permitiu diagnosticar que esta premiação quer encontrar a cura definitiva ou adquirir alguma imunidade que a desvencilhe de seu sintoma mais evidente: ser conhecida como a melhor prévia do Oscar.

Livrar-se deste rótulo não é uma tarefa fácil. Foi a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, a criadora da estatueta do Oscar, e do primeiro prêmio do mundo dos espetáculos, que nos ensinou o que seria a “excelência da arte do cinema” e, mais do que isso, utilizou a profusão publicitária para por fim à fragilidade que este guerreiro dourado poderia ter aos olhos do público. Se, como disse Neal Gabler, “para o sonho de consumo se concretizar, é preciso que alguém nos ensine a usar o objeto”, desde de 1929, aprendemos a enxergar qualidades e virtudes no Oscar que, se não fossem a afluência da mídia, das estrelas de cinema e da expansão do cinema americano no mundo, esta estatueta poderia ter continuado sendo apenas um enfeite de lareira em estilo art-decó, sem significado algum. E o Oscar tornou-se o símbolo máximo do cinema porque desenvolveu o poder de objetificar qualquer filme ou pessoa em uma mercadoria reconhecida facilmente pelo grande público. Chegamos até mesmo ao ponto de não acharmos estranho cobrarmos justiça deste prêmio (e apenas deste prêmio) com os negros, as mulheres, os judeus, aos filmes altruístas e à compensação do esforço individual.

Pelo menos formalmente, a Hollywood Foreign Press Association não negou a estrutura do espetáculo criado pela Academia: apoio da classe artística à cerimônia (especialmente atores e atrizes), incentivo aos discursos melodramáticos dos vencedores que tanto encantam o telespectador (não existe um controle de tempo tão rígido quanto no Oscar), o suspense dos envelopes lacrados, a presença da empresa que apura secretamente os votos, depoimento de (ex)presidentes (neste ano foi Bill Clinton, mas em 1941 o então presidente Franklin Roosevelt fez um discurso na cerimônia do Oscar), ligação com atividades beneficentes, aparições inesperadas (como a do cantor Prince) e, principalmente, a presença da televisão, que transforma o Globo de Ouro em um evento com mais espectadores fora do hotel do que no salão propriamente dito. Em tempo: até mesmo este formato de grandes jantares já foi utilizado pela Academia, mas acabou sendo encerrado por causa da 2ª Guerra Mundial.

No entanto, avaliando agora um pouco o conteúdo do que foi apresentado, pude verificar uma mudança sintomática que afeta a relação do Globo de Ouro com as premiações que o antecedem, que são as dos críticos, e que pode acabar por desvincular sua relação com a principal premiação o sucede que é Oscar. A entrega do Globo de Ouro é precedida pelos prêmios concedidos pelo New York Film Critics Circle, Los Angeles Film Critics Association, National Society Of Film Critics e National Board Of Review. Não quero colocar em questão quem está certo ou errado em suas escolhas, mas apenas buscar algum tipo de compreensão a partir das diferenças. “The Aviator” foi o filme mais premiado da noite (melhor filme, ator e trilha sonora), mas sem ter sido agraciado nenhuma vez pelos críticos. Imelda Staunton, candidata a melhor atriz, que recebeu todos os prêmios da crítica e em vários festivais no mundo, viu como vencedora em sua categoria Hilary Swank. Clive Owen sagrou-se vencedor, tendo em seu histórico apenas o título de melhor ator coadjuvante pelo New York Film Critics Circle. Duas vitórias, também sem prêmios anteriores, sinalizam esta busca por novos horizontes: Leonardo DiCaprio e Natalie Portman, atores jovens, bem sucedidos e normalmente preteridos pela crítica em geral. A única categoria que não apontava favoritos era a de direção, e onde Clint Eastwood venceu “a briga” por Million Dollar Baby e, talvez, o único consenso da noite tenha sido a atuação de Jamie Foxx, na cinebiografia de Ray Charles.

Desta forma, o Globo de Ouro coloca um marco divisório no calendário das premiações anuais. De um lado, uma legião de críticos, com poder de mídia e influência, mas sem programas televisivos para alcançar o grande público. De outro, a Hollywood Foreign Press Association parecendo buscar uma nova identidade e se manter como a principal formadora de opinião através de seu “reality show” anual. Os efeitos colaterais desta mudança ainda estão por vir. Como boa parte dos mais de 6.000 eleitores do Oscar são influenciados pela mídia e por premiações, resta saber qual vai ser a principal “fonte de pesquisa” destas pessoas. Dependendo do resultado, o Oscar pode se tornar um “eco quase perfeito” do Globo de Ouro ou dos críticos. Talvez beneficie o Oscar, que antecipou a entrega de seus prêmios em um mês desde o ano passado, justamente para minimizar a influência das outras premiações nos seus resultados. Ou, ainda, há a possibilidade de o Globo de Ouro deixar de ser uma prévia do Oscar, ganhar independência e procurar “fabricar” novas justiças dentre as várias possíveis no extenso mundo de celulóide.

Tom Lisboa é pesquisador de cinema, fotógrafo e autor do livro “Entre a estatueta do Oscar e o Oscar da estatueta”. (www.sinTOMnizado.com.br/oscar)