Na minha mera posição de
espectador e pesquisador de cinema, assistir à 62ª cerimônia de
entrega do Globo de Ouro, criado pela Hollywood Foreign Press Association, me permitiu
diagnosticar que esta premiação quer encontrar a cura definitiva ou
adquirir alguma imunidade que a desvencilhe de seu sintoma mais
evidente: ser conhecida como a melhor prévia do Oscar.
Livrar-se deste rótulo não é uma
tarefa fácil. Foi a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas,
a criadora da estatueta do Oscar, e do primeiro prêmio do mundo dos
espetáculos, que nos ensinou o que seria a “excelência da arte do
cinema” e, mais do que isso, utilizou a profusão publicitária para
por fim à fragilidade que este guerreiro dourado poderia ter aos
olhos do público. Se, como disse Neal Gabler, “para o sonho de
consumo se concretizar, é preciso que alguém nos ensine a usar o
objeto”, desde de 1929, aprendemos a enxergar qualidades e virtudes
no Oscar que, se não fossem a afluência da mídia, das estrelas de
cinema e da expansão do cinema americano no mundo, esta estatueta
poderia ter continuado sendo apenas um enfeite de lareira em estilo
art-decó, sem significado algum. E o Oscar tornou-se o símbolo máximo
do cinema porque desenvolveu o poder de objetificar qualquer filme ou
pessoa em uma mercadoria reconhecida facilmente pelo grande público.
Chegamos até mesmo ao ponto de não acharmos estranho cobrarmos justiça
deste prêmio (e apenas deste prêmio) com os negros, as mulheres, os
judeus, aos filmes altruístas e à compensação do esforço
individual.
Pelo menos formalmente, a Hollywood
Foreign Press Association não negou a estrutura do espetáculo criado pela
Academia: apoio da classe artística à cerimônia (especialmente
atores e atrizes), incentivo aos discursos melodramáticos dos
vencedores que tanto encantam o telespectador (não existe um controle
de tempo tão rígido quanto no Oscar), o suspense dos envelopes
lacrados, a presença da empresa que apura secretamente os votos,
depoimento de (ex)presidentes (neste ano foi Bill Clinton, mas em 1941
o então presidente Franklin Roosevelt fez um discurso na cerimônia
do Oscar), ligação com atividades beneficentes, aparições
inesperadas (como a do cantor Prince) e, principalmente, a presença
da televisão, que transforma o Globo de Ouro em um evento com mais
espectadores fora do hotel do que no salão propriamente dito. Em
tempo: até mesmo este formato de grandes jantares já foi utilizado
pela Academia, mas acabou sendo encerrado por causa da 2ª Guerra
Mundial.
No entanto, avaliando agora um
pouco o conteúdo do que foi apresentado, pude verificar uma mudança
sintomática que afeta a relação do Globo de Ouro com as premiações
que o antecedem, que são as dos críticos, e que pode acabar por
desvincular sua relação com a principal premiação o sucede que é
Oscar. A entrega do Globo de Ouro é precedida pelos prêmios
concedidos pelo New York Film Critics Circle, Los Angeles Film Critics
Association, National Society Of Film Critics e National Board Of
Review. Não quero colocar em questão quem está certo ou errado em
suas escolhas, mas apenas buscar algum tipo de compreensão a partir
das diferenças. “The Aviator” foi o filme mais premiado da noite
(melhor filme, ator e trilha sonora), mas sem ter sido agraciado
nenhuma vez pelos críticos. Imelda Staunton, candidata a melhor
atriz, que recebeu todos os prêmios da crítica e em vários
festivais no mundo, viu como vencedora em sua categoria Hilary Swank.
Clive Owen sagrou-se vencedor, tendo em seu histórico apenas o título
de melhor ator coadjuvante pelo New York Film Critics Circle. Duas vitórias,
também sem prêmios anteriores, sinalizam esta busca por novos
horizontes: Leonardo DiCaprio e Natalie Portman, atores jovens, bem
sucedidos e normalmente preteridos pela crítica em geral. A única
categoria que não apontava favoritos era a de direção, e onde Clint
Eastwood venceu “a briga” por Million Dollar Baby e, talvez, o único
consenso da noite tenha sido a atuação de Jamie Foxx, na
cinebiografia de Ray Charles.
Desta forma, o Globo de Ouro coloca
um marco divisório no calendário das premiações anuais. De um
lado, uma legião de críticos, com poder de mídia e influência, mas
sem programas televisivos para alcançar o grande público. De outro,
a Hollywood
Foreign Press Association parecendo buscar uma nova identidade e se
manter como a principal formadora de opinião através de seu
“reality show” anual. Os efeitos colaterais desta mudança ainda
estão por vir. Como boa parte dos mais de 6.000 eleitores do Oscar são
influenciados pela mídia e por premiações, resta saber qual vai ser
a principal “fonte de pesquisa” destas pessoas. Dependendo do
resultado, o Oscar pode se tornar um “eco quase perfeito” do Globo
de Ouro ou dos críticos. Talvez beneficie o Oscar, que antecipou a
entrega de seus prêmios em um mês desde o ano passado, justamente
para minimizar a influência das outras premiações nos seus
resultados. Ou, ainda, há a possibilidade de o Globo de Ouro deixar
de ser uma prévia do Oscar, ganhar independência e procurar
“fabricar” novas justiças dentre as várias possíveis no extenso
mundo de celulóide.
Tom
Lisboa é pesquisador de cinema, fotógrafo e autor do livro “Entre
a estatueta do Oscar e o Oscar da estatueta”. (www.sinTOMnizado.com.br/oscar) |