Entrevista
com Cláudio Assis
Claudio Assis lança ainda em agosto o muito aguardado Amarelo
Manga, que estreou no Festival do Rio de 2002 e desde então
colecionou prêmios em Brasília e no Cine Ceará, além de uma
passagem feliz pelo Festival de Berlim. Trata-se, desde já, de
uma das mais contundentes estréias da fase pós-95 do cinema
nacional, nem só pelo filme quanto pela postura e personalidade
afeitas a polêmica do seu diretor. Conversamos com Assis sobre
isso tudo e muito mais.
Contracampo:
O filme situa muito bem os personagens em seus ambientes físicos
e em seus universos sociais, em uma descrição documental de
seus meios, mas a ficção é assumida como tal naquela
realidade. Ela faz questão de interferir no real por meio de
uma afirmação de estilo.
Claudio
Assis: Nosso desafio era sair da ficção, entrar no
documentário e voltar para a ficção. O desafio era fazer isso
sem agredir o espectador. Queríamos fazer mais cenas
documentais, mas na rua o bicho pega. Não teríamos como manter
controle.
Contracampo:
Você parece estar em busca de uma marca com o filme. Tão
importante quanto os personagens e a descrição do mundo deles
é a maneira escolhida para se filmar. Isso foi planejado
anteriormente ou surgiu no processo?
Claudio
Assis: Eu não faço story board. Não gosto quando sei
o que vai acontecer no set. Não quero aprender a fazer assim, não
tenho vontade e não tem nada a ver comigo. Quero emoção, que
as pessoas sintam o que estão fazendo naquele momento, o da
filmagem, e isso a gente descobre na hora. Não cenografo apenas
uma parte do cenário para só filmar aquele canto. A câmera
vai para todo o canto, tem de estar tudo cenografado, se não
fico escravo de um limite. Amarelo Manga é um filme difícil.
Trata da miséria humana. Se não buscarmos uma elegância no
movimento de câmera, no enquadramento, no desenho das cenas,
fica um negócio feio e podre. Uma das minhas preocupações era
fazer com que as coisas não ficassem restritas. A gente se
preocupou ao máximo para haver prazer em se ver o filme. Isso
interefere em todos o processo. É como o americano faz, mas do
nosso jeito, filmando nosso povo.
Contracampo:
Qual a origem do filme?
Claudio
Assis: Um crítico da Set disse que o Amarelo Manga,
veja isso, é consequência do Texas Hotel. Mas quem
disse isso a ele? Por que ele não me ligou? Quando eu fiz o Texas,
já existia o roteiro do Amarelo Manga. Há apenas o mesmo
ambiente. Então estou plagiando a mim mesmo?
Contracampo:
Mas qual a idéia inicial? Você queria estrear em longa e foi
atrás de um filme, ou queria estrear com este filme em específico?
Claudio
Assis: Walter Carvalho chegou um dia a pedir para eu
desistir desse projeto. Disse que não ia. Passei seis anos
viabilizando esse filme e só me interessava fazer ele. O
projeto surgiu de várias coisas. Eu tinha um TL cujo nome era
Amarelo Manga, que foi incendiado em uma oficina. Também tinha
o púbis de uma garconete, que eu conhecia, e queria usar de
alguma forma no filme. E isso veio a calhar com aquele poema do
Renato Carneiro Campos. Mas o filme não existe por causa do
poema e, sim, por causa do meu carro e do púbis de uma mulher.
Daí surgiu o nome. E o amarelo é a cor do Nordeste.
Contracampo:
Mas para além do púbis da mulher e de seu carro você já
tinha idéia de filmar esse ambiente social?
Claudio
Assis: Já sim. A idéia me veio de uma provocação
gerada em mim pelo cinema americano. Eu odeio americano, mas é
o filme deles que a gente assiste, pois é o que chega aqui, né?
E eles fazem filmes em que os heróis saem matando gente, uma
violência urbana desnecessária. O cara fica puto com o trânsito
e sai matando o povo. Caralho. Violência por violência. Então
ficava pensando: a gente tem uma violência nossa, cotidiana,
dentro da nossa própria casa, que é tão violenta quanto
filmes de Hollywood. Queria fazer um filme sobre essas pequenas
violências, que fosse poético e violento ao mesmo tempo. Por
isso o Jonas Bloch mata cadáver, quem já está morto, porque
é um vício inofensivo, simbólico. Os outros elementos surgem
daí, dessa violência dentro de nós.
Contracampo:
A fala da Aleyonna Cavalli, no final, reflete uma impotência. E
o filme evidencia essa impotência do povo para sair da situação
na qual vive, principalmente naquela sequência, já no fim, na
qual surgem vários rostos sem nenhuma esperança na expressão.
Claudio
Assis: O que gerou a sequência dos rostos, no final,
é a impotência e um chamado. É como se aqueles rostos
dissessem: "Olhem para mim, eu sou esse tipo na miséria,
tenho algo a dizer, quero comer, tenho tesão, quero me
divertir". É um grito em silêncio para chamar atenção.
Contracampo:
A personagem da Dira Paes e do padre em crise, em suas falas e
atitudes, matam a possibilidade do sagrado, em um mundo de
opressões, e a inevitabilidade do profano. Isso afasta o filme
de uma visão comum, quando se filma personagens simples e
populares, principalmente no Nordeste, de que o pobre é reserva
ética do Brasil
Claudio
Assis: Quem filma assim tem culpa e faz filmes de
culpa. Por isso mostram que o pobre é bonzinho. Mas a vida não
é assim não. Esses diretores precisam primeiro resolver o
problema da alma deles
Contracampo:
E quais filmes dos últimos anos retrataram o povo de forma
satisfatória em sua visão?
Claudio
Assis: Os de Eduardo Coutinho. Ele mostra o povo de
forma honesta. Ele respeita
Contracampo:
O que não é respeitar?
Claudio
Assis: É você maquiar, tratar de maneira folclórica,
glamourizar a pobreza. Não há verdade. Fazem entretenimento próprio
para enganar os outros. Como nós podemos imitar os americanos?
Temos uma cultura rica. Eles fazem o cinema deles muito bem.
Temos de fazer o nosso.
Contracampo:
O que você chama de imitar? Imita o que?
Claudio
Assis: No formato, na maneira de contar a história, de
construir personagens, criar conflitos. Os americanos tem
"know how" de contar história. Nossas histórias
precisam ser contadas de outra maneira. Somos outro povo. Não
temos de imitar para ser aceitos. Eu não quero. Não quero
ganhar Oscar. Temos de ganhar o povo da América Latina, temos
de ter conversa com esse cinema, temos de buscar nossa
identidade, que um dia tivemos, perdemos e estamos atrás dela
de novo. Mas a maioria quer ir para o Oscar. Isso para mim não
interessa.
Contracampo:
Mas é importante o cinema brasileiro estar dentro da discussão
de um cinema mundial. Para isso, é preciso se projetar para
fora do país. Não competir no Oscar, mas existir
internacionalmente.
Claudio
Assis: Claro. Mas temos de ter antes uma política para
chegar ao exterior. Sou contra é fazer filmes com características
que achamos ser as que agradarão lá fora.
Contracampo:
O Nordeste é uma ótima matéria prima para esse tipo de cinema
rechaçado por você.
Claudio
Assis: Porque é folclórico, o Brasil rural e arcaico.
Mas também tem filme urbano assim, imitação de Tarantino.
Contracampo:
Você se sente mais próximo do Cinema Novo, que tinha uma visão
romântica e depositava no povo uma esperança de transformação
social, ou do Cinema Marginal, que tem uma visão mais de
impasse e não acredita mais em nada?
Claudio
Assis: A menina da Folha de São Paulo me perguntou se
eu queria ser o novo Glauber Rocha. Pô... Não quero ser ninguém.
O cinema pode flertar com várias cinematografias. E quero fazer
coisas diferentes, até um infantil, pois os infantis
brasileiros são babacas e escrotos, um absurdo, tratam as crianças
feito idiotas. Mas voltando à sua pergunta, acho que o filme
aproxima-se mais do Marginal. Não pensei em fazer assim, mas
trata de uma marginalidade. E é marginal também, pelo preço
que foi. Deve ser mesmo uma nova leitura do cinema marginal. E
isso me agrada muito
Contracampo:
Mas a proximidade com o Marginal talvez esteja em uma visão de
impasse. Há um grande bode, uma grande ressaca. Há até textos
em off em que expressam idéias sobre uma falência da esperança.
Principalmente no texto do padre, que não vê mais sentido em
nada.
Claudio
Assis: É. Mas deixa eu te contar uma coisa. Aquela
cena em que o Chico Diaz entra no templo evangélico, sabe? A
gente entrou filmando lá sem pedir autorização. Ele vinha
vindo pela calçada e fomos entrando filmando. Não estava
previsto não. Aconteceu de improviso. Aquela reação no
templo, com o povo gritando "sai satanás, fora
capeta", aconteceu de verdade. É uma loucura o que a
religião faz com o povo. Ela acaba com as culturas. Não
permite que você beba, não permite que você dance. Em todo o
canto, tem essa peste. Por isso o filme tem tanta igreja.
Contracampo:
Quais as dificuldades adicionais para um nordestino fazer cinema
no Nordeste?
Claudio
Assis: Todas. Temos de levar tudo para lá. Não temos caminhão
gerador, câmera 35mm, técnicos suficientes. Tem uma câmera
16mm, mas que não é, não dá para usar. Não tem nada, nem na
Paraíba, em Alagoas, no Ceará. Na Bahia, tem uma Super 16mm,
boa, mas é só. Isso impossibilita a formação de mão de
obra. Temos de importar tudo. Por isso quando o equipamento
chega lá a gente aproveita para fazer alguma outra coisa.
Contracampo:
Amarelo Manga gerou algum outro trabalho com esse equipamento?
Claudio
Assis: Eu e o Walter Carvalho fomos filmar na Paraiba um curta
dele que está virando um longa. É um filme chamado Cinema,
sobre cinemas abandonados do Interior.
Contracampo:
E a dificuldade de se captar estando em Recife?
Claudio
Assis: É um terror. Os governos abrem as pernas para
os diretores paulistas e cariocas para filmar no Nordeste, mas
tratam a nós como coitadinhos e dão uma miséria para a gente.
Também existe esse absurdo de, com o filme pronto, ser chamado
de cinema pernambucano, não de brasileiro.
Contracampo:
Mas você é contra diretores fora do Nordeste filmarem no
Nordeste
Claudio
Assis: Seria burrice e maniqueísmo achar isso. Sou
contra é privilegiar os de fora e contra as visões deturpadas
de nossa cultura
Contracampo:
Como você conseguiu se viabilizar financeiramente nos seis anos
em que ficou atrás de dinheiro para filmar?
Claudio
Assis: É uma luta. Faço documentário, institucional,
pesquisas, ganho aqui e ali, pouco, mas dá para viver. Tenho
uma vida simples e não tenho grandes ambições. Quero apenas
viver e vivo da minha profissão. Não quero
"enricar", mas quero viver melhor.
Contracampo:
Mas para viver melhor é preciso que os filmes tenham mais
visibilidade.
Claudio
Assis: No Brasil, é muito doido. Nos EUA, menos de 10%
do mercado é para os filmes estrangeiros. Aqui, nós temos 10%.
E a soberania nacional onde está? Era para a gente dizer:
"aqui a gente só passa filme nacional e os americanos tem
direito a 10%. Quer?". Mas não. Todo filme americano tem a
bandeira, o hamburguer, o milk shake, fora a ideologia
imperialista. Na televisão, está cheio de enlatado. E todo
mundo aceita. Eles não querem só ganhar dinheiro, querem também
dominar o mundo ideologicamente. É preciso botar ordem na casa
e acabar com a bagunça
Contracampo:
Seu filme custou R$ 450 mil. Não acha que alguns filmes excedem
no orçamento?
Claudio
Assis: Tem de ter um teto de R$ 3 milhões para filmes
feitos com dinheiro público
Contracampo:
Os diretores brasileiros têm fama de não irem ao cinema, não
conhecerem o que está acontecendo no cinema mundial e não
pensarem o cinema além dos próprios filmes. Você acha
fundamental a formação como espectador antes de ir para a
realização?
Claudio
Assis: Não tive escola de cinema. Fiz dois anos de
comunicação e dois anos de economia. Minhas aulas de cinema
foram as discussões nos três cineclubes que ajudei a organizar
em Caruaru e em Recife. Mas não tenho memória para cinema.
Vejo muito filme que, sem lembrar, já tinha visto. Conheço
diretores que fazem citações, o Brian de Palma faz isso.
Admiro esses caras, mas não saberia fazer, nem quero. Quando
estou fazendo, tudo o que vi está lá. Isso vai contruibuir
para meu trabalho, mas não de forma racional, que me leve a
seguir essa ou aquela linha. Não quero essa memória para mim.
Contracampo:
E como foi a experiência como cineclubista?
Claudio
Assis: Projetei muitos filmes. Pegava o trem com o
equipamento para exibir filme na rua e em escolas.
Contracampo:
E você tem esboçado um projeto de cinema a ser seguido?
Claudio
Assis: Meu projeto é fazer filmes nos quais acredito.
Quero ser verdadeiro. Tenho de acreditar em meus filmes. Mas
tenho uma tendência a tratar as questões de frente, de cara,
mostrar como a vida é, de preferência com questões ligadas ao
povo, com as minhas idéias. Esse é meu universo, o meu
caminho, isso é que bate na minha cabeça, sem visões românticas
e idealizadas. Isso dá samba, dá maracatu, dá festa.
Entrevista
realizada e transcrita por Cléber Eduardo.
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