ANA PROCOPIAK, auto-retrato em marcha

O que mais surpreende em Ana é a mudança de rumo que sua obra toma, sem dar sinais antecipados. Ela estava preocupada com uma investigação sobre a pintura, desde sua primeira exposição individual em 1989, para desenvolver um método de controle construtivo sobre a abstração. Hoje, ela muda bruscamente seu rumo. A pintura ainda é seu questionamento, mas ela não está mais ali; as camadas sobre as camadas de tinta que conduziam seus quadros às riquezas de detalhes deram lugar a um outro trabalho, um trabalho em marcha (work in progress) que traz, também, o frescor de algo que está começando e que já produz seus primeiros resultados concretos.

Recentemente, a artista desenvolveu um trabalho acadêmico-teórico sobre a imagem fotográfica e suas relações com outros meios da arte, como a própria pintura, a fotocópia ou a imagem digital. Seu tema foi o auto-retrato como mediação simbólica centrada no corpo feminino, nas artes visuais.

Nas artistas que Ana Procopiak investigou, havia uma vontade de desestabilização do ideal de beleza feminina, de ruptura do mito de Narciso, que “não se perde fascinado pela própria beleza”. De Narciso, ela nos conduz a Mársias, o sátiro exímio tocador de flauta que ousou desafiar Apolo num duelo musical e, vencedor, foi esfolado vivo pelo deus. É Ovídio que narra o desespero de Mársias:

“Por que me arrancas de mim mesmo?”.

“Por que me dilaceras? gritava ele”.

“Seus membros ficaram sem a pele e seu corpo era uma só ferida; seus músculos descobertos eram visíveis, viam-se nas suas veias o sangue que corria sem que qualquer pele as recobrisse. Podiam -se contar as palpitações de suas víceras e de seu peito. Viam-se as suas entranhas” (Ovídio, Metamorfoses, VI, 383-401).

Essas novas séries de trabalho de Ana Procopiak, que ela mesma denominou de “Desvãos da Tessitura”, abordam, por meio da fragmentação, da colagem e da montagem, seus questionamentos, suas dúvidas relativas ao que está num “entre”, num momento intercalado dela mesma ou de seu trabalho, num intervalo (no sentido musical) que, ao ser percebido, torna visível o que era invisível.

O corpo não é espetáculo para ela, mas é um corpo repartido, um corpo em pedaços, herdeiro do desaparecimento da imagem, na modernidade. Na metáfora de Narciso, ele é a figura humana impregnada de sua própria pessoa, mas, em Mársias, ele é a pessoa desmembrada, com as entranhas abertas que gritam: “Por que me dilaceras?”.

“Seu corpo como um campo de batalha”, diz Bárbara Kruger, em uma de suas obras. Nos anos 60, era a tela esse campo de batalha para os artistas; agora, a arte contemporânea, reconhecendo o vazio deixado pelo homem, coloca seu corpo como objeto de investigação e também de sedução, o dentro e o fora. Para Ana, o rosto é o “fragmento metonímico do corpo”, que ela vai elaborar e reelaborar em busca da identidade, ela quer reativar o imemorial, reencontrar um sentido, uma origem.

Em algumas séries aborda a identidade em conjunto com a sua qualidade de pintora. São auto-retratos fotográficos e fotos de pintura, recortados, fragmentados e transformados em texturas, em retículas. As montagens são deslocamentos, aproximações ou afastamentos, que introduzem a noção de tempo, de decalagens.

Ela trata essas séries com cortes tanto na foto quanto na camada de gelatina, novamente é aquele “entre” o intervalo, que é cortado:

... “E que a noite já nos divide, oh! Narciso!

 

 

 

 

 

 

 

 

 


E escorrega entre nós o ferro que um fruto corta!”... (Paul Valéry, Fragmentos de Narciso)”.

Cortes no material e no seu conteúdo. É ação violenta sobre os objetos que, depois, estarão presos em suportes feitos com grandes placas de ferro negro oxidadas, que trazem consigo, também, as marcas do tempo. Aqui, um “rosto-corpo” foi dividido, repartido e misturado com os fragmentos de pinturas. Fotos em branco e preto e coloridas, criando símbolos de metamorfoses que recuperam o vestígio do artista e, também, o corpo dilacerado de Mársias. O vestígio é o outro da imagem, vestígio da presença e imagem da ausência.

“O enigma consiste em que meu corpo é ao mesmo tempo vidente e visível” (Merleau - Ponty)

É uma tessitura de fragmentos, de fotografias e pinturas fotografadas, retratos e identidades da artista, que podem ser manipulados pelo espectador. Não mais pinturas, tampouco fotos, uma se diluiu na outra e ambas no tempo.

Marcas nas fotos, marcas no corpo, um terceiro momento é o do olhar fotográfico: o vidente, que é o sujeito questionador, e o visível. O autor atrás da câmara, pelo distanciamento e pelo deslocamento, possibilita o acesso à visibilidade. O fotógrafo integra - se ao mundo do espectador, quando ele se situa num espaço dentro e fora da imagem e é capaz de desvendar o mundo ou a si próprio.

Aquelas imagens de segundo grau converteram-se em vestígios, em pós-imagens, em imagens que foram reelaboradas na denegação do corpo do pintor que, negando conscientemente seu desejo expresso, torna-se transparente. A denegação é um conceito criado por Freud, mas que nos chega através de Louis Marin.

Ela retorna ao cenário da pintura, ao cenário de Narciso como pai da pintura. A um narcisismo impossível, Ana Procopiak insere a problemática do virtual, do jogo entre o vestígio e a imagem de segundo grau e, também, a clonagem da realidade como um novo modelo do real: nós todos nos tornamos ready-mades, pois o sujeito reconstrói-se ao recolocar pedaços de si próprio e de outros, para assumir identidades diferentes. Todas elas são partes da autobiografia da artista. Pela fragmentação, pela adição de relações metafóricas ou metonímicas, o auto-retratista quer representar o irrepresentável, representar tudo o que é móvel: a passagem do que ele é para o que ele não é mais.

Fernando Bini.