CAPITÃO SKY E O FUTURO DO CINEMA
por Adalberto Müller

 

Robots

É claro que Captitão Sky e o mundo de amanhã é um filme de entretenimento. Produzido dentro do sistema de estúdios, ao preço (até módico) de 70 milhões de dólares, com três estrelas do primeiro escalão, é um filme para ser vendido junto com as pipocas, embora a campanha de marketing não se compare com filmes do gênero (Homem aranha, Hellboy). Talvez os grandes distribuidores não tenham arriscado por a mão no fogo por um filme um tanto quanto suspeito (isto é, de resultado incerto). Daí porque a imprensa, que sempre aguarda o sinal verde dos grandes marqueteiros, nã tenha se pronunciado a respeito.

Uma lástima, pois Captitão Sky e o mundo de amanhã é não apenas um dos melhores filmes do gênero. Aliás, a que gênero pertence mesmo esse filme? A indústria o comercializa como ficção científica. Mas é preciso ver que nesse filme as cartas do gênero estão meio embaralhadas: o filme começa como um thriller marcado pelo cinema noir americano (até a chegada dos robôs), transforma-se numa espécie de Godzila (filme catástrofe), passa pelo gênero filme-de-guerra, depois se transforma numa aventura de espionagem estilo 007, tudo isso recheado por um melodrama amoroso em torno dos protagonistas.

Entre outras coisas, Captitão Sky e o mundo de amanhã é também um filme sobre o cinema. A começar pelo seu caráter intertextual. Há referências diretas e indiretas bastante reconhecíveis a vários cineastas e filmes: Orson Welles (na cena da cabine telefônica, Gwynet Paltrow cita quase textualmente The war of the world; a montagem das notícias e o jornal remetem a Citizen Kane); Fritz Lang (sobretudo de Metropolis); George Lucas (a THX 1138 e, sobretudo, a Star Wars, de onde saem muitas cenas de batalha aérea); e aos filmes O mágico de oz (que não apenas aparece na tela, mas serve de inspiração para a seqüência da entrada na ilha), O morro dos ventos uivantes, e ao já mencionado filme-catástrofe Godzilla (na sua versão japonesa).

Não é impossível imaginar que todas as referências que povoam o filme tenham sido cuidadosamente elaboradas, constituindo um palimpsesto fílmico a ser estudado futuramente, mas que desnorteia o espectador desavisado, dando a impressão de um filme "frio". Afinal, o filme foi criado ao longo de quatro anos numa garagem, na qual o seu criador, roteirista e diretor Kerry Conran, munido de um computador Apple, dedicou-se a engendrar uma fábula cenográfica digital, que depois seria completada com a presença de atores e de uma elaboradíssima trilha sonora. A combinação atores reais-cenário digital não é nova, e foi usada recentemente por Eric Rohmer (L'anglaise et le duc). Na verdade, ela faz pensar em Meliès e suas extravagâncias cenográficas (Meliès é, aliás, o criador de do gênero ficção científica, com o seu Viagem à lua, de 1902, também citado por Conran).

A exemplo do que vem acontecendo com muitos filmes recentes, Captitão Sky e o mundo de amanhã também dialoga com a história em quadrinhos - gênero textual que vem tirando a primazia da literatura (do romance) como fonte de histórias para o cinema, a exemplo do que ocorre com muitos filmes dos anos 90-2000, como Batman, O homem-aranha, Hulk, entre outros). Mas aqui o sentido do diálogo se altera: não se trata de uma adaptação de um comic book, mas de um filme que se apresenta ele mesmo como um comic book cinematográfico. Isso em primeiro lugar pelo uso da animação computadorizada. Mas também pela própria decupagem, que faz pensar nos estilo de Stan Lee-Marvel Comics). Há inúmeras referências a Buck Rogers, Flash Gordon e Superman. O personagem Dex (Giovanni Ribisi) é leitor assíduo de HQ, e cria suas armas inspirado nelas (é o próprio Capitão Sky-Jude Law quem nos dá essa informação numa das falas do filme).

Mas o que vem principalmente dos quadrinhos é a moldura dramática do filme. O Capitão Sky (Jude Law) é o típico herói da Marvel: um ás meio britânico que, pilotando seu Spitfire, dispõe-se a salvar a humanidade, quando esta é atacada por uma série de robôs gigantescos, comandados pelo Dr. Totenkopf (em alemão, "cabeça morta", nome que faz jus ao personagem, criado a partir da voz e da imagem digitalizadas de Laurence Olivier). Para vencer o Mal (que depois veremos ser as próprias máquinas), ele recebe a ajuda de sua ex-namorada, a repórter Polly Parker (Gwynet Paltrow), sensualíssima mistura de Lois Lane e Rita Hayworth, que, sempre com a câmera na mão, age como investigadora de um filme noir e como a mulher durona, mas aos poucos vai entregando o ouro ao adorável Capitão (detalhe: ela trabalha para um jornal chamado Chronicle, mais uma referência a Cidadão Kane). A relação cômico-amorosa de Sky-Polly é marcada por um passado conflituoso (Polly considera que Sky a traiu durante a guerra da Manchúria), que os afasta e ao mesmo tempo os mantém unidos por uma espécie de desejo de consumar um amor mal resolvido. A relação deles é pontuada pela presença de uma Outra, no caso a capitã Franky Cook (Angelina Jolie), que, comandando uma espécie de Porta-Aviões aéreo, auxilia Sky a entrar na ilha do Dr. Totenkopf. A caçada a Totenkopf, e a entrada em cena de Franky (terá sido ela a amante de Sky na Manchúria?), a adrenalina, terminam por reaproximar Sky e Polly, que, no melhor estilo Marvel, se amam sem se tocar, já que o super-herói marveliano é quase sempre misógeno, ou tímido demais para declarar o seu amor diretamente.

O recheio intertextual e o diálogo com os quadrinhos são na verdade um aspecto do caráter essencialmente híbrido desse filme. A hibridação começa com a mistura de cenários digitais e atores, se desenvolve dentro de uma moldura que opera com o noir e a ficção científica. Como ficção científica, o filme já é híbrido: a história se passa aparentemente em 1939, às vésperas da II Guerra; portanto, o que vemos como ficção é o mundo do futuro imaginado nessa época, o que faz do filme uma coisa que se chama ficção-retrô (nome já bastante híbrido), ou seja, a mistura do filme de ficção com o filme de época. O Dr. Totenkopf e o seu desejo de construir uma Arca de Noé para salvar a humanidade da "contaminação" e da "degradação" fazem lembrar o projeto de Hitler de purificação racial. Aliás, o mundo controlado por máquinas e robôs é não apenas uma citação a Metrópolis, mas uma referência ao III Reich. Além disso, o Dr. Totenkopf, como Hitler, promove experiências genéticas, e ataca vários países para obter a energia e a matéria-prima necessária para a realização de seu sonho megalomaníaco.

Mas o inédito nessa história é que descobrimos que o Dr. Totenkopf estava morto há mais de 20 anos. O que restou dele é só uma imagem gravada, que controla um mundo de máquinas e de cientistas alienados. A ilha do Dr. Totenkopf, que representa o Mal, que ameaça a humanidade, contra o qual o Bem (Sky-Polly-Franky-Dex) luta, é um sistema que hoje chamamos de autopoiético. Um sistema pós-humano que age a partir de uma inteligência artificial, capaz de auto-governar-se a partir de uma programação inicial. E a programação efetuada pelo Dr. Totenkopf será, como sempre ocorre nos quadrinhos da Marvel, a destruição da humanidade (e a criação de um novo mundo, a partir dos espécimes a serem lançados no espaço numa nova Arca de Noé). O fundo é também bíblico, não apenas por causa da Arca de Noé moderna, mas porque o Dr. Totenkopf é uma espécie de Deus de um mundo de máquinas. Aqui a referência mais próxima é o badalado The matrix, mas podemos pensar no Dr. Totenkopf e seu mundo de máquinas como a reencarnação do antigo mito do Golem. Ou ainda, como o computador Hall, de 2001: Uma odisséia no espaço.

Com todos esses elementos, implícitos ou explícitos, dependendo do tipo de espectador, Capitão Sky e o mundo de amanhã tem tudo para ser um fracasso de bilheteria. Como aconteceu, aliás, com o bastante citado Cidadão Kane. Mas talvez seja um filme que aponte para um novo caminho do cinema. Ou melhor, para novos caminhos. A combinação de cenografia digital e atores reais poderá ser um desses caminhos, pois permite que os custos gigantescos com cenografia sejam minimizados. Explorada inteligentemente (como o faz Conran), a cenografia digital pode ser um recurso ilimitado de criatividade. Do outro lado, a presença do elemento elemento humano (os atores, o figurino, a fotografia, etc.) dá grande vivacidade e interesse ao filme. Na verdade, Conran demonstra como se pode combinar de forma inteligente o digital e o humano: a fotografia, o figurino, e sobretudo a decupagem, fazem a duas coisas se integrarem harmonicamente. O real parece desenho, e vice-versa. Essa hibridação do humano e do não humano é na verdade um dos temas profundos do filme. Talvez, no verdedeiro "mundo de amanhã", tenhamos que saber a nos integrar com as máquinas, a interagir cada vez mais com elas. Mas sem perder a dimensão do humano, sem perder o amor e o respeito pela vida. É por isso que gosto demasiadamente da cena final: quando Sky e Polly explodem a Arca, salvando a terra e os animais que lá estavam, Polly prepara-se para bater a única foto que poderia provar que tudo aquilo aconteceu. Como repórter, é a sua grande chance de ficar rica e famosa. Bastava clicar a câmera e registrar aquela cena meio fim-do-mundo. Mas ela vira a câmera, e tira uma foto do Capitão Sky. Para temperar a cena com ironia, e fugir ao happy-end facilitado, Conran põe na boca de Jude Law-Capitão Sky esta tirada genial: "Mas você não tirou a tampa da câmera, Polly".

Adalberto Müller é professor de Literatura na UnB. Autor de Enquanto velo teu sono (7letras, 2004). É membro-pesquisador da SOCINE (Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema) e articulista do Correio Braziliense.